Milton Marques Junior

Voltei a traduzir Catulo. Primeiro dos poetas latinos clássicos, Catulo opera uma revolução na literatura da sua época, ainda limitada à épica e à história. Viveu pouco, cerca de 30 anos. Oriundo da cidade de Verona, de família abastada, Gaius Valerius Catullus (87/84-57/54), estabeleceu-se em Roma, onde viveu uma vida de cliente, ainda que não tenha passado pelas agruras desse relacionamento com os patronos, como Marcial, o seu discípulo mais dileto, de quem ele dista quase cem anos.

Mesmo não passando pelos dissabores como cliens, Catulo esteve sob a proteção de pessoas importantes como o escritor Cornelius Nepos, a quem ele dedica o seu livro; o questor Manlius Torquatus e o magistrado Caius Memmius, em cuja companhia passou um ano na Bitínia, então Ásia Menor, atual Anatólia, na Turquia. Se a proteção buscada não era pelas necessidades materiais – ele possuía casa em Roma e uma vila em Tibur, além da propriedade da família em Verona –, ela se fazia necessária pela vida conturbada do poeta.

No meio culto em que foi acolhido, seja pela sua condição material, seja pela sua poesia, Catulo fez muitos inimigos, por causa do seu espírito irônico, ferino, sarcástico e, em alguns momentos, agressivamente pornográfico. Cícero o chamou, pejorativamente, neóteros (νεώτερος), o mais novo; depois, nouus poeta, poeta novo ou juvenil, fazendo a inflexão do epíteto menos na novidade que Catulo trazia dos poetas alexandrinos gregos, como Calímaco, seu mestre, do que na sua ousada juventude. Desentendeu-se com Júlio César, a quem o pai hospedou em Verona, desdenhando do poderoso cônsul (Carmen 93) e ironizando as suas relações íntimas com Mamurra (Carmina 29 e 57), que serviu no exército de César, na guerra da Gália, como prefeito dos engenheiros e teria, assim, se tornado muito rico. Seu maior desafeto foi o orador Hortensius Hortalus; seus maiores amigos, os poetas Licinius Calvus e Helvius Cinna, de cujas obras apenas sabemos pelas referências que Catulo faz na sua poesia.

Detestava os maus poetas, enfatuados e olhando sempre para o seu próprio umbigo (Carmen 22); as pessoas afetadas na pronúncia eram impiedosamente ironizadas (Carmen 84), jamais poupava um desafeto, como Gellius, que acusa de incesto com a mãe e com a irmã (Carmen 88), ou Lesbius, pseudônimo de Clodius Pulcher (Carmen 75), acusado também de incesto com a irmã Clodia, verdadeiro nome da sua amada Lesbia.

Lesbia é um capítulo à parte de um amor convulsionado, em que várias fases se alternam, impossibilitando ver este romance de forma linear. O amor a Lesbia é cheio de conflitos, angústias, dores, prazeres, rupturas e recomeços, mas a traição dessa mulher casada, que se desconfia ser a patrícia Clodia, leva-o a romper definitivamente com ela, por não querer dividi-la com outros amantes. A ligação dura quatro anos, tornando-se o grande acontecimento de sua vida e ocupando toda a sua obra lírica. Dentre os vários poemas a ela dedicados, alguns são doces como os Carmina 2 e 3, outros apaixonados, traduzidos em beijos incontáveis e inumeráveis, como os Carmina 5 e 7; o Carmen 58, por exemplo, é a visão degradante da amada, praticando atos indecorosos, pelos becos, com os netos de Remo, no caso, os bastardos, vez que Remo não teve netos… O Carmen 109 é dos mais líricos, vislumbrando um amor doce e eterno, mas nada se compara ao dilaceramento do amor em conflito com o ódio, que o invade e o confunde, como o Epigrama 85 – “Odi et amo” – aqui já publicado. O Carmen 8 é o seu contraponto, com o poeta pedindo a si mesmo para manter-se firme, sendo necessário fortalecer a sua alma, deixando de lado a vida de miséria e de infortúnio, provocados pelo sofrimento da perda da amada.

Gostaria, no entanto, de finalizar este pequeno ensaio, trazendo o bem-humorado Carmen 13, em que o poeta convida Fabulo para um grande jantar em sua casa, desde que o amigo forneça todos os ingredientes, com o argumento de que “a bolsa do seu Catulo está cheia de teias de aranha”. Catulo exagera, evidentemente, na falta de recursos, mas revela o seu bom humor e deboche, no trato de seus poemas. Dentre as coisas que Fabulo deve providenciar não podem faltar o vinho, as meninas e as risadas estridentes, que dão o sal aos encontros desse tipo:

Carmen XIII – Ad Fabullum

Cenabis bene, mi Fabulle, apud me

paucis, si tibi di fauent, diebus,

si tecum attuleris bonam atque magnam

cenam, non sine candida puella

et uino et sale et omnibus cachinnis.                                  5                         

haec si, inquam, attuleris, uenuste noster,

cenabis bene: nam tui Catulli

plenus sacculus est aranearum.

sed contra accipies meros amores

seu quid suauius elegantiusuest :                                         10

nam unguentum dabo, quod meae puellae

donarunt Veneres Cupidinesque,

quod tu cum olfacies, deos rogabis,

totum ut te faciant, Fabulle, nasum.

Carmen XIII – Ad Fabullum

Cēnābīs bĕnĕ, mī Făbūllĕ, ăpūd mē

Paūcīs, sī tĭbĭ dī făuēnt, dĭēbŭs,

sī tēcŭm āttŭlĕrīs bŏnăm ātquĕ māgnăm

cēnām, nōn sĭnĕ cāndĭdā pŭēllā

ēt uīnō ēt sălĕ ĕt ōmnĭbūs căchīnnīs.                                  5                         

hǣc sī, īnquăm, āttŭlĕrīs, uĕnūstĕ nōstĕr,

cēnābīs bĕnĕ: nām tŭī Cătūllī

plēnūs sāccŭlŭs ēst ărānĕārŭm.

sēd cōntrā āccĭpĭēs mĕrōs ămōrēs

seū quīd suāuĭŭs ēlĕgāntĭūsuēst :                                         10

nām ūnguēntūm dăbŏ, quōd mĕǣ pŭēllǣ

dōnārūnt Vĕnĕrēs Cŭpīdĭnēsquĕ,

quōd tū cūm ōlfăcĭēs, dĕōs rŏgābĭs,

tōtŭm ūt tē făcĭānt, Făbūllĕ, nāsŭm.

Carmen XIII – A Fabulo

Cearás bem, meu Fabulo, em minha casa

em poucos dias, se os deuses te forem favoráveis,

se contigo trouxeres boa e, além disso, grande

ceia, não sem radiosa amante

e vinho e fineza de espírito e todas as cachinadas.                            5
Se tiveres trazido estas coisas, digo, nosso amável amigo,

tu jantarás bem: pois de teu Catulo

a bolsa está cheia de teias de aranha.

Mas em contrapartida, receberás puros amores                                         10

ou o que há de mais agradável e mais distinto:

pois te darei um perfume, que à minha amante

As Vênus e os Cupidos fizeram dom,

que quando tu cheirares, rogarás aos deuses,

que, Fabulo, te tornem todo em um nariz.

Destacarei não só a jocosidade de Catulo, o final dos mais eróticos, envolvendo o perfume do amor, erotismo bem disfarçado pelo bom humor, mas também o uso de uma expressão que vai reverberar em um outro grande escritor, Euclides da Cunha. Trata-se de “cachinadas”, no verso 5.

Em “A Luta”, terceira parte de Os sertões, no Capítulo V, “Travessia do Cambaio”, do episódio “Retirada”, Euclides da Cunha refere-se ao difícil recuo das tropas, comandadas pelo major Febrônio de Brito, sob o “tripúdio de símios amotinados” dos jagunços (São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2019, p. 326), que haviam transformado o desfecho da batalha em uma “arruaça sinistra”:

“Piores que as descargas, ouviam brados irônicos e irritantes, cindidos de longos assovios e cachinadas estrídulas, como se os encalçasse uma matula barulhenta de garotos incorrigíveis” (p. 327).

Mais do que um homem culto, Euclides da Cunha era erudito. O vocabulário de Os sertões está recheado de termos e de expressões em latim. O sertão, por exemplo, não tem um perfil ou um aspecto, na sua pena, tem sempre uma facies. O uso, contudo, de “cachinadas” (cachinnus, cachinni), com o mesmo sentido utilizado por Catulo e reiterado pelo adjetivo “estrídulas”, julgo vir direto do poeta latino, por não ser expressão de uso comum.

Jovem, independente, bem de vida, com uma veia irônica tão afinada quanto a veia lírica, Catulo provocou a revolução literária em Roma, que abriria o caminho a Virgílio e a todos os líricos que vieram em seguida. Morreu cedo, mas viveu muito e continua vivendo.